A fonte era linda, pareciam Pokémon
reais petrificados. Era na forma de um Gyarados que enrolava a cauda em
circulo, fechando a base da fonte, enquanto o resto do corpo erguia-se e
jorrava água pela larga boca aberta. Sobre o decorrer da cauda, Magikarp
jorravam água também pela boca diagonalmente para o centro e pareciam venerar
sua evolução. O resto da praça não possuía nada de excêntrico, apenas bancos de
madeira, árvores e plantas espalhados por ela, enquanto quatro caminhos de
cimento levavam à fonte, no centro. Era a principal “atração” da praça,
justamente por ser o diferencial, e era exatamente onde Sophie e Sakka estavam
sentadas entre os Magikarps, sobre a cauda do Gyarados.
Como de costume, começaram a fazer
diversos truques para impressionar as pessoas que passavam: jogar um
considerável jato de água da fonte em um homem de terno apressado para o
trabalho sem que ele se molhasse o fez ficar confuso e cair na gargalhada,
rendendo-lhes um pouco de dinheiro; queimar a água da fonte com o poder da
mente impressionou um bando de crianças sem dinheiro, mas alguns pais deram
pela satisfação que foi para elas; Sophie engoliu e cuspiu fogo; alteraram a
cor da água da fonte, entre outros truques.
Até que, ao acabar o pequeno Show após
algumas horas, satisfeitas com o que haviam conseguido, o homem verdadeiramente
impressionado surgiu. Era adulto, mas ainda jovem, seu rosto era bem fino e
tinha cabelo negro com um moicano pintado de roxo, usava óculos escuros,
trajava uma camisa preta e sem mangas com um Koffing estampado, revelando
braços fortes e um pouco malhados, uma bermuda jeans e um colar dourado. Sua
pele era bronzeada e ele estava fumando um cigarro.
─ E ai, pequena mágica ─ após revelar
sua voz rouca, ele abriu um largo sorriso, tirou o cigarro da boca por alguns
instantes e ficou segurando com a mão direita em V. ─ ouvi falar um pouco de você e vim aqui
pessoalmente pra te ver em ação.
─ O que quer comigo? ─ Ela perguntou,
franzindo o cenho.
Sakka deu um salto para o colo da
garota, que a segurou no ar. Ele apenas calou-se por um instante e voltou seu
rosto para a raposa.
─ Que gatinho bonitinho você tem ai...
ela que faz?
─ É uma raposa. ─ Sophie continuava
séria.
A menina abraçava forte sua
companheira. Aquele cara era no mínimo suspeito para ela e o que mais temia
naquele instante era perder a única coisa que tinha na vida. Sakka se sentia da
mesma forma e se sentiu um pouco mais segura com o aperto da garota.
─ Entendo, vou considerar um sim. ─
Devolveu o cigarro à boca.
─ Por que eu ainda to falando com
você?
Ela deu as costas e se preparou para sair.
Queria fugir daquela situação angustiante o mais rápido possível. Se tudo o que
poderia perder na vida era sua preciosa Zorua, era melhor deixar de ganhar uma
oportunidade do que perder o que tinha, foi assim que pensou.
─ Wooo, calma ai rebeldezinha... ─ ele
apenas tocou em seu ombro, sem fazer força para segurá-la ─ tenho uma oferta
pra te fazer.
─ Estou ouvindo. ─ respondeu receosa.
Sua cabeça estava confusa. Fugir ou
não fugir? Eis a questão. Ao menos pensou que poderia enganá-lo com ilusões ou
até realizar ataques diretos para escapar, então escolheu arriscar. Não gosto desse cara, Sophie, a raposa
disse via telepatia e unicamente para ela, um pouco nervosa.
─ Boa garota ─ o homem sorriu largo
novamente, largando o ombro ─ tenho certeza que iria preferir trabalhar pra mim
do que ficar aqui na rua. Posso te dar comida, um lugar pra ficar e o dinheiro
que precisar.
─ E o que precisaríamos fazer?
─ Lutar por “nós”. ─ ele gesticulou as
aspas ─ Só explico se quiser lutar.
Sakka e Sophie se entreolharam, ainda
inseguras de dizer sim ou recusar a proposta. Passaram praticamente a vida
inteira morando nas ruas e de certa forma estavam acostumadas, mas dinheiro,
moradia e comida eram exatamente o que precisavam no momento. O que não
precisavam era ser enganadas por um cara interesseiro que poderia comprometer a
vida das duas para sempre.
─ Tudo bem, não precisa responder
agora. ─ o homem pausou para liberar a fumaça do cigarro e pôs novamente na
boca ─ me encontre naquele bar ali, amanhã, se quiser.
Ele apontou utilizando o cigarro para
um lugar mais a frente da praça. As paredes eram marrom claro, uns troços roxos
de madeira com forma triangular que ela não fazia ideia do motivo daquilo, uma
porta vermelho-escuro com uma pequena janela redonda a uma altura que
certamente não alcançaria e uma janela retangular de cada lado da porta,
preenchida com vidros verde e marrom, intercalados em forma de losango e que
com certeza não era uma combinação bonita. Estava escrito em um letreiro bem
sugestivo acima da porta, “BAR DO RAB”. Inclusive, Sophie se perguntou se era o
nome verdadeiro do dono e ele estaria destinado a ter um bar, ou se era só um
apelido mal feito colocando o nome “Bar” de trás pra frente. A calçada tinha
algumas latinhas amassadas e garrafas vazias, que contribuíam para uma fachada
não muito bonita ou limpa.
─ Eh... ok, eu acho... ─ Sophie
respondeu com certa repugnância pelo ambiente, não conseguindo esconder a
aversão estampada em sua face.
[...]
A menina ficou de frente a porta e
parou por um instante. Respirou fundo, pegou Sakka no colo e empurrou a porta,
dando o primeiro passo para entrar naquele ambiente totalmente novo. Internamente,
parecia ainda mais sujo e bagunçado, com um balcão de madeira marrom-escuro a
alguns metros à frente onde se encontrava o barman e bancos acolchoados
vermelhos ao redor dele Havia mesas e cadeiras de bar espalhadas pelo lugar, o
chão era formado por quadrados cinza e paredes verdes.
Cerca de dez homens estavam ali e
todos eles voltaram o olhar para a porta. Ela notou que inicialmente olharam
para cima e foram abaixando a cabeça até chegar a sua altura. Dois deles,
carecas e muito tatuados, levantaram-se e vieram em sua direção. Um era gordo e
o outro talvez do mesmo peso que ela.
─ A loja de bonecas é pro outro lado,
vá lá com seu gatinho. ─ O gordo falou, enquanto o outro imediatamente riu.
─ Eu vou lá quando tiver dinheiro pra
te dar presentes, tudo bem? ─ Sophie retrucou ─ E é uma raposa.
Enquanto ela apenas sorria ironicamente
encarando-o, o magro caia em gargalhada, rindo da cara de seu parceiro.
─ Engole essa, seu trouxa! ─ o magro
apontava para a cara dele, que com certeza estava com vontade de sufocar a
garganta do rapaz ─ Você tem uma língua
bem afiada, hein ─ disse em meio aos risos, voltando-se a garota ─ com boneca
ou não, só adultos podem beber e é a única coisa que dá pra fazer aqui. Está
perdida?
Ela os ignorou por um instante e
procurou com os olhos o cara do moicano de antes. Estava de costas, bebendo no
banco do balcão do bar, porém de perfil observando a conversa, sorridente e
fumante como sempre, ou melhor, como da mesma forma que estava há um dia.
Daquela posição era possível ver um pedaço de seu olho, que se revelava
castanho. Quando notou que ela lhe encontrou com o olhar, acenou.
─ Se aquele cara ta fumando, então dá
pra fazer mais algumas coisas aqui. ─ Ela apontou para o cara do moicano ─ e
relaxa, qualquer lugar sem dono é a minha casa mesmo.
─ Se você diz... ─ o magro abriu os
braços ─ então se sinta em casa.
Eles voltaram para seus assentos e
Sophie andou em direção ao fumante, chamando atenção de todos os olhares de
todas as mesas, nem todos pareciam amigáveis. Alguns tinham curiosidade do por
que uma garota daquela estaria ali, outros tinham interesse sobre sua raposa,
já outros simpatizaram com a patada que ela deu no homem. No fim, todos
voltaram a encher a cara e esqueceram-se dela.
─ Sakka ─ Ela sussurrou para a Zorua
em seu colo ─ para de rir tanto na minha cabeça.
Hahahahaha...
ah, rum, claro, desculpe. Mas aquela foi boa mesmo. Sakka mal conseguia
conter os risos “por fora” e até “por dentro”, escapando por telepatia para
Sophie durante a conversa. A garota sentou-se em um banco ao lado do homem, sem
conseguir alcançar o chão e balançando as pernas por conta disso. Ele acabava
de tirar o cigarro da boca para levar o copo em seu lugar, tomando um gole de
cerveja.
─ Você ta com pressa mesmo de morrer é?
─ Sophie apontou para o cigarro e a cerveja. O coitado do moicano, em meio ao
gole, quase se engasgou com o riso.
Enquanto isso, ela colocava Zorua sobre
o balcão, mas Rab fez cara de reprovação imediatamente.
─ Será que poderia pôr seu gatinho no
chão? ─ Disse o homem, enxugando um copo como qualquer clichê do cara que fica
no balcão dos bares.
Rab tinha um cabelo negro e liso e
praticamente petrificado com gel, penteado para a direita como se uma miltank
tivesse lambido e chegava a brilhar; também usava óculos redondos de grau e
tinha um curto bigode. Vestia uma espécie de colete abotoado preto por cima de
uma blusa branca.
─ É uma raposa. ─ Sophie suspirou e
expressou seu sorriso irônico novamente ─ Ah, desculpa, o balcão é tão sujo que
nem vi diferença do chão.
Deu tapinhas nas pernas e Sakka pulou do
balcão para ela. O pobre rapaz ao seu lado teve ainda mais dificuldades de
respirar, mas conseguiu engolir a cerveja por fim.
─ Ai, Rab, o que tem ai pra crianças?
─ Perguntou, ainda se recompondo das risadas e meio bêbado.
─ Acha que eu vendo danoninho pra um
bando de bêbados? ─ semicerrou os olhos por causa do pedido estúpido, enquanto,
obviamente, enxugava um copo.
─ Pô, nem um refrigerante? ─ contorceu
a boca, fingindo desapontamento ─ Costumam tomar com vodka às vezes.
─ Devo ter algum... ─ Rab revirou os
olhos.
O balconista entrou numa sala atrás do
balcão, provavelmente algum tipo de depósito.
─ Então ─ se voltou para a garota ─ o
que me diz da proposta?
─ Acertando
os detalhes, de acordo. ─ Sakka disse na mente dos dois.
As duas haviam pensado bastante sobre
a proposta e decidiram pelo menos ouvir a explicação da situação em que
precisariam lutar caso aceitassem.
─ Mas o que... ─ ele piscava
rapidamente os olhos, confuso, pois Sophie não havia movido os lábios e nem era
a voz dela ─ quem disse isso?
A pequena Zorua deu pequenos saltos e
Sophie apontou para ela, orientando-o.
─ Podemos
ser mais discretos assim. Então, qual seu nome? Os sinônimos do narrador pra
você já estão acabando.
─ Aqui está ─ Rab surgiu, com um copo
de refrigerante em mãos.
Eles notaram a presença de Rab, mas
ignoraram completamente por ter chegado em meio a uma pergunta.
─ Meu nome é Levi, qual o de vocês? ─
O do moicano respondeu ─ e tenho certeza que ele ainda não usou sinônimos como
“o homem lindo, bonito, estiloso, príncipe de contos de fadas”...
─ Sophie, e eu tenho certeza que ele
não vai usar... ─ a garota coçou a nuca.
─ Sakka.
─ ela também coçou a cabeça com a pata traseira, mas provavelmente era apenas
uma coceira sem significado.
─ Eh... ─ Rab estava plantado
esperando alguém pegar o copo ─ ah, se virem, vou deixar aqui em cima.
─ Opa, nem te vi Rab ─ Levi disse em
tom de zombaria ─ tu não tem nada pra Pokémon também ai não?
Uma veia saltou da testa do barman e
ele fechou os olhos, tentando contar até dez mentalmente para se acalmar, sem
conseguir. Bateu com as duas mãos no balcão e avançou sobre o rapaz não
estiloso, que recuou por reflexo.
─ Por algum acaso, EU TENHO CARA DE
ENFERMEIRA E ISSO PARECE UM CENTRO POKÉMON? ─ Gritou para todo o bar ouvir.
Todos voltaram os olhares para aquilo.
─ Ehh... ─ ele coçou o queixo,
pensando, até ter uma ideia ─ tem quem usa leite nas misturas também, tem ai
não?
─ Vou providenciar. ─ Rab retomou a
postura e voltou para a sala interior, ainda com os nervos a flor da pele.
Após se decepcionarem por não ter
ocorrido nenhuma briga ou algo do tipo, os outros voltaram a encher a cara e
esqueceram completamente do ocorrido em segundos.
─ Quem
que te disse que eu tomo leite? ─ protestou Sakka.
─ Gatos não bebem leite? ─ Levi
provocou a Zorua.
─ Eu
sou uma raposa. ─ ela revirou os olhos segurando a vontade de mordê-lo, era
a quarta vez e sabia que ele tinha feito de propósito ─ E crescidinha já.
─ Nesse caso, eu sugiro que a gente saia
daqui antes que ele volte.
─ Também acho ─ Sophie disse em meio
ao último gole no refrigerante ─ como ele consegue passar a vida toda limpando
copos e isso ainda continua meio sujo?
─ Eu sei lá ─ O vilão dos contos de
fadas inclinava a cabeça para trás e dava um último grande gole em sua cerveja
─ Vamos pro nosso lar, podemos acertar direitinho as coisas lá.
Sem nem ter notado direito, elas
aceitaram a ir até o “lar” do cara que era suspeito para elas há alguns
momentos. De algum modo, ele havia conquistado um pouco da confiança delas com
situações um tanto quanto... fora do comum para elas.
─ Espera, não vai pagar? ─ Sophie
lembrou.
─ O capítulo já acabou, esqueça isso e
vamos.